quarta-feira, 30 de abril de 2008

A culpa e o remorso

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A culpa, nas sociedades em que habitamos, é, fundamentalmente, uma construção cultural enquadrada por paradigmas definidos nas grandes religiões do nosso tempo. Neste particular e em concreto a culpa cristão decorre da nossa, simplista no modo como aqui a exponho, intuição do erro, do pecado. Ao termos consciência da culpa, capacitamo-nos da quebra que estabelecemos em relação a um quadro de valores que procuramos seguir e por isso a culpa é, para além da assumpção interior e religiosa que cada um faz dela, um mecanismo de salvaguarda desses valores e princípios em que aceitamos viver e conviver com os outros. A perda deste sentimento e a sua anulação representam, por isso, a perda progressiva de um referencial de valores e uma tendência para a alienação, individual e social, com todas as consequências que daí possam advir.

O remorso, nas suas múltiplas dimensões, é a consequência da culpa. Este sentimento, tão escondido no nosso dia a dia, mas tão presente nas sensações mais íntimas de cada um de nós é, mais do que qualquer outro, uma garantia absoluta de humanidade e de capacidade de compreensão de que há actos, que pelas consequências que geram, potenciam uma alteração grave ao padrão de valores com que nos orientamos e por isso uma falta para connosco próprios e para com os outros.

Vem isto a propósito de duas questões recentes, diametralmente opostas, mas reveladoras do quanto a perda de um quadro de valores fortes e determinantes é grave para as sociedades em que vivemos.

Em primeiro esta inacreditável estória do Sr. Fritzl e da filha que ele manteve em cativeiro durante 24 anos, violando sucessivamente, e da qual teve 7 filhos. Para lá da bestialidade de tudo isto há, como tão bem referia o Director do Público, a questão dos valores e nela emerge a questão do remorso. Não tem, nunca terá tido, ao longo de todos aqueles anos, aquele homem qualquer remorso pelo que estava a fazer a uma filha sua, na cave da sua própria casa e ao mesmo tempo em que vivia com os restantes filhos e mulher? Como pôde? Não ter tido significa simplesmente que o mal germina onde não existem valores, nos locais mais esconsos da natureza humana onde qualquer humanidade é impenetrável e onde o quadro de referências onde nos devemos situar simplesmente não existe, só assim pode não haver remorso, só assim pôde haver 24 anos de indizível horror perpetrados por um homem absolutamente pacato. Ou como nos disse Hannah Arendt, para outros fins mas com um mesmo objectivo, a banalidade do mal.

Em segundo, a questão da eliminação da culpa nos processos de divórcio. Abstraiamo-nos, neste caso, da vacuidade política e putativa simplificação administrativa do problema e concentremo-nos na questão dos valores. A decisão de abolir este preceito remete-nos, imediatamente, para a desconstrução progressiva do invólucro de valores que nos deve guiar. Acharmos, na pacatez das nossas tendências que um acto, seja que acto for, não tem ou representa qualquer quebra dessa cadeia de valores e entendermos que a assumpção da culpa é irrelevante, é, simplesmente, o caminho certo para o descalabro das sociedades que até aqui temos construído. Se tudo um dia for relativo então acreditar que subsistem sempre valores absolutos e intocáveis é não mais que um anacronismo absurdo e datado, o que, objectivamente nos garantirá, a todos, um bilhete de regresso à lei da selva. E para quem não se recorda, nessa lei, subsiste fundamentalmente um valor: sobreviver.

E assim, ao observarmos estes dois exemplos, e sem querer fazer entre eles qualquer paralelo, porque não há, nem pode haver, sublinho, constatamos o quanto o caminho do relativismo se vai fazendo, como se o nosso relógio após vinte séculos de construção civilizacional subitamente voltasse ao zero e começasse a fazer o caminho inverso.

Luís Manuel Guarita

1 comentário:

Anónimo disse...

Adorei a sua associação do remorso com a culpa!
O que eu admiro na justiça americana é que um violador,por exemplo,recebe ajuda psicológica para ter consciência da sua atitude e passando para o arrependimento,para não voltar a acontecer.Isso não acontece sempre...mas diminui...com certeza!
Felicidades***